Dia da República...
"Hoje celebrou-se a República, Viva, Viva - dizia o Povo!"
A expressão bem que poderia ser o slogan de um livro de história publicado pelo Regime. Mas, se assim fosse, estaria a léguas de distância dos tempos em que vivemos.
Portugal vive hoje amordaçado por uma culpa que tem e que não tem. Portugal tem a culpa de se ter demitido da participação, tanta foi a luxúria que o Regime permitiu e que viciou a libido dos «humanos portugueses» durante gerações. Foram os direitos adquiridos, as pensões ou reformas aos 30 anos de trabalho e 50 de idade, as férias no Algarve ou em Puntacana, os carros, as casas, as mobílias, uma Banca fulgurantemente "emprestadora", os juros baixos, a beleza dos salões de festas da Europa onde nos deambulávamos sem saber o que nos esperava. Durante décadas os portugueses viveram, com culpa, anestesiados, ausentes da participação, permitindo que os desvarios que concluímos hoje tenham acontecido. Não foi um erro, dois erros ou mais que os portugueses não viram ou não repudiaram. Foram inúmeros e durante vários governos. Mas a culpa dos portugueses foi só essa, não terem participado. Isto porque a democracia exigia que estivessem alerta, até durante a noite ou quando chegasse o dia dos fiéis defuntos das Finanças. Não foram os portugueses que construíram o "mensalão" do BPN ou do BPP - este que já ninguém fala. Mas, também não foram os portugueses que quiseram o TGV, que levou a chorudas indemnizações, não foram os portugueses que quiseram a privatização da EDP (bastião da energia descobridora da nação), não quiseram a privatização da ANA, dos CTT, da TAP... Não quiseram os portugueses uma troika que lhes disseram ser obrigatória, porque o contrário seria a miséria e a fome.
No meio disto tudo, a justiça fraquejou. Continuam os criminosos de colarinho branco à solta, os tribunais vivem, infelizmente, sob a suspeita de controlo ou de tutela de grupos de interesses ocultos, o RSI continua a ser dado a quem não quer trabalhar e a imagética do dia da República é essa pobre mulher, desesperada, porque perdeu a liberdade. Vive em democracia, quer gritar e não a deixam. Quer apenas dizer que é mentira afirmarem que vivemos em liberdade. Alguém que tem de viver depois de uma vida de trabalho com 200 euros não é livre. É uma pessoa subjugada, enxovalhada, menorizada, cuspida, maltratada, explorada, escravizada. Por detrás dessa senhora que grita pela República que os pais lhe prometeram encontra-se um rosto anónimo mas heróico. Esse rosto é o do filho que se compadece com a miséria deste país e que tem a iniciativa, heróica, de salvar a sua mãe que vive com 200 euros. O filho, esse, deve estar desorientado, sem saber se poderá ajudar sempre, porque alguém lhe disse que o desemprego ia aumentar no próximo ano ou que ele tinha de emigrar, afastando-se da pobre mulher sua mãe.
No meio de tudo isto o livro do Regime proclama: "Hoje celebrou-se a República, Viva, Viva - dizia o Povo!"
Alguns costumam dizer que a história que se escreve é a dos heróis e vencedores, nunca a dos perdedores. Mas será que isto quer dizer que a história que se vai escrever é a da China, do Brasil ou da Índia? Será que o sofrimento a que o povo republicano português foi sujeito não tem direito a um lugar na história porque simplesmente é perdedor? Perdeu o rendimento, mas mais do que isso perdeu a dignidade, a respeitabilidade, perdeu a honra e a liberdade. Sim, perdeu a liberdade.
A República, lamentavelmente, chegou a isto...
Pelo caminho, os partidos políticos, esses sim, culpados em muito mais, teimam em manter a mesma receita, a mesma «deméritocracia» do sistema, promovendo o maniqueísmo e o caciquismo e esquecendo a «res publica». Já não interessa mais o «bem comum». Isso é, para muitos, poeira dos livros antigos...
E a República vai nisto...
Mas, alguém exclama, como se fosse poeta, que "o povo português é o melhor do mundo"...
Que bem isso sabe à alma e ao coração depois de termos entregue a roupa do corpo, ou de essa senhora chorar copiosamente porque vive ou «invive» com 200 euros por mês.
O que resta desta República?
Apenas isto - o anónimo cidadão que salva o que resta dessa pobre mulher desesperada e que tem a virtude de ser seu filho.
Louvado seja esse jovem.
Louvados sejam todos os jovens que apenas querem ser portugueses e ajudar este país e louvados sejam os seus antepassados heróicos...
Perdeu-se o respeito pelas instituições, porque para isso contribuíram aquelas e porque se perderam os valores.
Hoje interessa, nesta república, o «bem próprio», não o «bem comum».
Perdeu-se a «dignidade da Pessoa Humana» e concretizou-se um golpe constitucional silencioso.
Dizem-nos: "é o único caminho" - nem que ele seja o do precipício. A questão já não é a de pagar dívida, porque essa deve ser sempre paga. A questão é a alma das pessoas que foi aprisionada e escravizada. Perdeu-se a ligação entre o indivíduo e a comunidade. E quando isso sucede, então já não é a República.
Hoje não devíamos celebrar a República, porque ela desapareceu!