O QUE FAZER AMANHÃ?
João Lemos Esteves, 05.02.10
Amiga perguntou-me via twitter (já agora, http://twitter.com/JLemosEsteves) porque razão o Governo não deixa a AR aprovar alteração à Lei das Finanças Regionais e depois revoga-a. No fundo, a pergunta é: porquê tanto barulho quando o Governo poderá fugir à deliberação do Parlamento, como indicia já a capa do jornal i de hoje? Ora, tentemos explicar de forma acessível:
1.º - A Constituição portuguesa confere ao Governo mais poderes do que qualquer outra Constituição europeia. Este órgão constitucional é, a um tempo, órgão supremo da administração pública (exerce a função administrativa, providencia pela boa execução das leis) e legislador em vastos domínios. Aliás, grande parte da legislação em vigor emana do executivo. Só que dentro da função legislativa (ou seja, o poder de elaborar as leis que regulam a nossa vida diária) há que distinguir: a competência exclusiva da AR (ou seja, matérias sobre as quais só o PARLAMENTO pode decidir, sem que o Governo possa em caso algum nelas mexer), competência relativa da AR (matérias sobre as quais o órgão deliberativo é competente, mas pode delegar no Governo, através de lei de autorização) e matéria concorrencial (uma terra de ninguém, sobre a qual quer o Governo, quer a AR podem intervir alternadamente – prosseguindo na metáfora, é uma terra de ninguém que pertence a quem chegar primeiro).
Como enquadrar aqui a Lei das Finanças Regionais? Ora, esta é uma matéria da reserva absoluta de competência legislativa da AR (art.164.º, t). O que significa que por muito que o Governo queira, em termos formais, nada pode fazer para revogar a alteração que, muito provavelmente, será aprovada hoje. Com esta particularidade: a Lei das Finanças Regionais é considerada pela nossa Lei fundamental um diploma tão importante que exige que seja aprovada por maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções (art.166.º, n.º 2 e art.168.º, n.º 5) – chamamos, em Direito Constitucional, a este tipo de acto legislativo uma lei orgânica. Consequentemente, estas leis pautam-se pela sua rigidez, pela maior dificuldade em serem revogadas, porque, ao invés da maioria, não basta uma simples maioria: tem de reunir uma maioria absoluta para ser aprovada. Daí ser uma lei reforçada pelo procedimento.
Atendendo à capa do diário “i”, não podendo o Governo reagir por via legislativa, será que prepara medidas de retaliação? Com que extensão e natureza? Pode o país, com todos os problemas que tem, viver em clima de guerra permanente? Acho que não...
Dito isto, o formalismo do nosso processo legislativo muito provavelmente vai ser a válvula de escape do PS para já. Porquê? Há um artigo na Constituição (o artigo 229.º, n.º 2) que impõe aos órgãos de soberania a audição prévia dos órgãos de governo regional sobre questões da competência dos primeiros respietantes às regiões autónomas. Ora, como a Lei das Finanças Regionais é notoriamente uma matéria de interesse das regiões autónomas, o facto de a Assembleia Legislativa dos Açores não ter sido consultada faz com que o diploma, caso seja aprovada amanhã, esteja ferido de inconstitucionalidade formal. É claro que pode contestar dizendo que o diploma pode ser aprovado e os órgãos regionais ouvidos depois. Á luz da jurisprudência do Tribunal Constitucional não é assim – o órgão máximo da Justiça Constitucional tem sido implacável nestas questões, adoptando o critério do efeito útil. A audiçaõ aos órgãos regionais tem de ser efectuada num momento do processo legislativo ainda que seja possível condicionar ou influenciar o conteúdo do acto legislativo (a audição tem de ter um “efeito útil”). Neste caso, como não é possível ouvir o a AL dos Açores até amanhã com “efeito útil”, para evitar um “berbicacho” jurídico e aumentar a confusão, o melhor é mesmo, na minha opinião, adiar a votação.