and now for something completely different: A sociedade e os afectos

Porque hoje acordei a divagar...
Há inúmeras formas de olhar, analisar e pensar o mundo. Há outras tantas de pensar o ser humano e mais ainda para analisar a sua interacção em sociedade. Uma forma muito interessante de analisar o comportamento do ser humano em sociedade são os afectos e a forma como toldam os seus comportamentos diários.
É um exercício ao alcance de todos. Basta olhar em redor com sentido crítico. Quantos jovens, hoje em dia, se levantam para ceder o lugar ao idoso num transporte público? Quantas pessoas se insurgem perante um assalto a poucos metros? Quantas pessoas se insurgem perante quem vandaliza, perante quem suja o espaço público? Quantas pessoas prestam auxílio a um estranho caído? Quantas pessoas oferecem ajuda a quem se mostra perdido ou desorientado? Todos estas observações que estão ao alcance de todos são resultado de uma perda de afectividade entre as pessoas. Essa perda de afectividade é resultado de inúmeros factores, mas sobretudo pela mudança radical no que toca à infância e ao convívio familiar. Cada vez mais as crianças crescem e desenvolvem-se alheadas de um verdadeiro ambiente familiar, onde a troca de afectos se manifesta mais por diálogos mas menos por gestos, por ausências ou silêncios. Há uma crescente valorização da comunicação, mas uma menor vivência dos afectos. As crianças crescem sem contactar com familiares, muitas vezes sem contactar com avós, primos, ou irmãos. Isto promove o alheamento durante a adolescência e a pura abstracção social enquanto adultos. A afectividade é algo concreto. É a empatia que desenvolvemos pelos idosos aprendida pelo acompanhamento da velhice dos nossos avós. É a empatia que sentimos na partilha, que desenvolvemos pela partilha com os irmãos. É essa empartia e os laços que desenvolvemos com outros humanos que promovem um sentimento de comunidade e de espécie. É a afectividade que leva a que valorizemos muito mais a vida de um humano que a vida de um animal. Pela mesma razão, e generalizando um pouco, essa afectividade sustenta a construção do conceito de identidade subjacente à comunidade, etnia, etc. Pela mesma razão ainda será fácil a qualquer um de nós categorizar o valor da vida das restantes espécies pela afectividade que temos para com elas: valorizamos certamente mais a vida de um cão ou de um gato que a de um gafanhoto ou de uma formiga. E eventualmente valorizaremos mais a vida de uma árvore que a vida de uma alga.
O conceito da afectividade pode ser levado mais longe: este conceito está subjacente à própria valorização da vida. A sacralidade da vida é resultado da afectividade que sentimos pelo ser vivo, e não pelo significado biológico de uma célula que replica o seu DNA. No limite, a sacralidade de uma vida ou de um feto em gestação é valorizado pela afectividade que os progenitores sentem por ele e não pela meiose do zigoto. Assim, um aborto é apenas aberrante quando é praticado contra o afecto dos progenitores. A forma como a sociedade actual promove a vivência dos seus afectos explica ainda o sucesso das novas formas de comunicação. Hoje, certamente uma maioria de jovens com menos de 30 anos sentir-se-á mais à vontade de comunicar sentimentos através de um chat que através de um telefonema, e substancialmente mais que numa conversa presencial... O principal resultado prático desta nova forma de socialização é uma solidão evidente que se manifesta não só no idoso que passa a tarde sozinho no banco de jardim, mas também do jovem que se alheia do mundo que o rodeia no conforto de uns headphones.